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Entrevista: Plantas medicinais, cura e ancestralidade

Uma das práticas que hoje conhecemos como uma vertente da medicina alternativa, há algumas décadas já foi utilizada como a principal forma de tratamento para dores, ferimentos e até controle de doenças. 

A utilização de plantas medicinais para a cura é um procedimento ancestral que acompanha o homem desde a pré-história e, desde então, vêm se descobrindo e se reinventando como fonte importante de tratamento medicinal. No Brasil, a prática de consumo das ervas medicinais foi passada pelos índios nativos que herdavam os conhecimentos passados pelo pajé da tribo. 

Maria do Carmo, conhecida como “Mãe Du”, é umbandista, espiritualista, possui mais de 50 anos de caminhada dentro da espiritualidade e atua em alguns grupos sociais. Herdou da avó o conhecimento em plantas da mata que ela utiliza para promover a cura através de chás. 

Em entrevista com a jornalista Andriza Andrade e a estudante de jornalismo Renata Nunes, Mãe Du fala sobre a sua relação com a cura, espiritualidade e o conhecimento adquirido em anos de prática com as plantas medicinais. 

“Hoje a terra nos alimenta, hoje nos servimos dela! E amanhã a gente servirá a ela”

RN – Conte um pouco da sua história. Como foi a sua trajetória para adquirir o conhecimento em cura através das plantas e da espiritualidade que possui hoje?

A minha trajetória começou simplesmente porque a minha avó era Católica Apostólica Romana da irmandade Sagrado Coração de Jesus. Meu avô, da irmandade Sagrado Coração de Maria… Eu me batizei, crismei e fiz a primeira comunhão. Tudo aqueles preceitos do ritual católico, né? eu fiz, junto com a minha avó. 

Mas desde pequena eu já tinha as minhas visões, já via os espíritos, já conversava com os espíritos, fui muito no benzedor… 

Eu não sei, eu acredito que minha avó não tinha muito conhecimento quanto à espiritualidade incorporante, isso veio depois quando meu avô veio a falecer e eu fui morar no Rio de Janeiro, trabalhava em uma gráfica de encadernação para menor aprendiz. E foi no dia 27 de setembro há 50 anos atrás, foi a minha primeira incorporação, e nada eu sabia de espiritualidade, nada entendia de espiritualidade, de incorporação, porque a minha criação foi outra, né? Foi uma doutrina católica, católica apostólica romana. Então nada entendi. E aí assim começou… A espiritualidade veio se achegando, veio se chegando… e aí a gente foi caminhando, caminhando, caminhando… e hoje tô aqui, né? E essa sabedoria, esses aprendizados de erva, de folha, eu aprendi com a minha avó, minha avó usava muitas delas para fazer chá; meu avô quando era vivo, também! Porque quando ele faleceu eu já tinha 11 anos, mas a gente já ia para as matas e buscava muito cipó, muitas ervas para fazer chá e também para distribuir, deixava em casa o cipó e as ervas para dar para os outros e também para a minha avó. Então eu tenho um conhecimento não só de folhas de hortas, mas também de ervas da mata. Até então, muitas já acabaram, não se vê mais!

Primeiro quando a gente anda pela mata afora, muitas do que eu conheci, do que eu conheço, eu já não vejo mais na mata; as frutinhas da mata que se pode comer; as folhas da mata que se pode comer; porque não é só folhas de horta que a gente come, a gente tem muitas ervas na mata, folhas na mata que a gente também come e o povo não conhece. Então eu conheço elas e uso não só para fazer o chá, para fazer o banho, mas também para se alimentar… Que  hoje o mundo moderno fala que é plantas “pancs”, mas eu já comia essas plantas há muito tempo, porque minha avó era índia bugre aqui dos índios da zona da mata, pra esse lado de Araponga, Canaã… e vai afundando aí! Então minha avó é dessa região daqui. Foi aonde que ela aprendeu com a avó dela e ela passou essa sabedoria pra gente e agora a gente tá passando essa sabedoria pra frente. Conheço bastante ervas caseiras mas também do mato. Eu não falo do cerrado por causa de que as do cerrado são poucas, do cerrado foram só aquelas convivências que a gente teve aí na caminhada… nas caminhadas quilombolas, nos conhecimentos com as caravanas, né? Aí eu conheço um pouco, mas do cerrado, muito não! porque a gente não é do cerrado. Então cada um tem a sua região… Conhece ali mais as suas ervas da região. Então as ervas da região nossa aqui que eu confio, eu digo que conheço um pouquinho. 

RN – A senhora procura passar esse conhecimento adiante? E acredita que a prática da cura com as plantas ajuda a reforçar a identidade e o conhecimento de seus antepassados? 

Ah, é muito importante! Reforça e guarda os saberes né? Porque tem dois saberes! Hoje em dia tem os saberes astrais, os saberes não acadêmicos, que no caso seria como eu, né? Nas simples palavras, no simples jeito de falar, no gesto de agir… esse é o meu conhecimento, esse é o conhecimento ancestral! 

Mas também tem o conhecimento acadêmico que já é a tradução do que nós falamos e aí traduz em outras palavras… palavras acadêmicas. Então eu acho muito importante esse aprendizado, esse compartilhamento… porque se não a cultura morre. Aí vai ficar os mais velhos que vão levar consigo e os mais novos não vão aprender. Então quando fez essa introdução dos saberes ancestrais com os saberes acadêmicos, eu achei assim… maravilhoso! Fiquei maravilhada porque pelo menos vai ficar nos livros, vai ficar gravado! De um jeito diferente, mas vai ficar gravado. E muita coisa como eu estou gravando agora, a minha fala vai ficar. Então vai juntar amanhã mais o depois, vão juntar a minha fala com os saberes acadêmicos. Então isso é muito importante.

E para repassar no tempo de hoje a nossa sabedoria para o jovem que tá vindo… Tá bem difícil, bem complicado, porque o pessoal de hoje, a juventude de hoje não quer saber de nada disso, ela quer saber de tecnologia. E aprender com a mão na massa, pegar, sentir, ver, né? apalpar, tocar, tá muito difícil… 

Então vão saber? Vão! Através da tecnologia. Porque assim… sentir na pele, criar como eu fui criada, pegando nas ervas, sentindo o cheiro das ervas, definindo as ervas só com o cheiro, com o aroma, né? Chegar na mata assim e respirar e saber “aqui tem tal folha”, só no cheiro, isso aí vai acabar! Porque ninguém vai querer ir pro mato, porque todo mundo tem medo de mato, medo de ir na mata, e não sabem que a mata é vida! a mata é uma farmácia viva! Dela você pode tirar tudo! 

RN – De uma maneira geral, a senhora sente falta da valorização dessa medicina tradicional? Sente que esse trabalho é desvalorizado? 

Totalmente. Porque hoje na própria casa da gente se você faz um chá e dá para a criança beber ela não bebe; mas se você pingar umas gotinhas de dipirona ou novalgina na água, ela bebe! E não bebe o chá que faz o mesmo efeito. 

E além do chá fazer efeito, ele não faz efeito só naquilo ali que a pessoa está sentindo, ele faz efeito em todo o corpo, então ele toma o chá para aquilo que está sentindo e esse próprio chá já trabalha toda outra questão corporal para que outras doenças não cheguem. Ele trata aquela e inibe as outras. 

RN – Como a senhora vê a importância de se cultivar essas plantas? Tanto os quintais de plantas medicinais, quanto as ervas da mata? 

O cultivo das plantas em si tem que fazer o quê? Tem que ter movimentos sociais, como já tem bastante, né? E… não são todos… os terreiros dos quilombos, muitos têm plantas, muitos não têm nada. Então ter o movimento de bairro em cima disso, para as pessoas terem farmácia viva no quintal; para elas terem as próprias folhas de chá no quintal, para evitar ficar tomando esses remédios, porque os remédios “dos brancos” eles fazem bem para uma parte e te atrapalham na outra. 

Então se você toma um remédio para dor de cabeça, aí ele vai e já acaba com o seu estômago. Aí você tem que tomar um para dor de cabeça e outro para o estômago. Você toma um para o estômago, aí você já vai ter que tomar outro remédio porque o do estômago fez outro efeito. Aí quando você vê, você já está com a mão com 10 ou 15 comprimidos tomando uma “mãozada” como se fosse arroz com feijão para um curar o efeito do outro. E acaba o quê? Você se estragando. porque daqui a pouco não tem mais remédio para você tomar. E a folha do chá você toma e ela vai trabalhar toda a sua estrutura, todo o seu corpo. Ela vai curar ali a raiz da questão e vai curar outras raízes, outras coisas que estão no seu corpo sem te fazer mal, porque ela é natural, ela veio justamente para te curar sem prejudicar outras partes do seu corpo.

RN – Assim como os medicamentos sintéticos, é necessária uma orientação prévia quanto ao consumo de ervas medicinais? Existe a necessidade de uma moderação ou precaução? 

Eu acho que sim. Até pra tomar o chá tem que ter cuidado porque ele cura, mas também mata. Tomar em excesso pode trazer outras lesões. Então eu acho que é preciso sim! É bom tomar o chá com orientação, porque você vai tomar a dosagem certa, no tempo certo, na hora certa e no dia certo.

Porque nesse ponto aí não é muito diferente da medicina branca. Só que a medicina branca faz efeito imediato, você “tomou, melhorou”, dez minutos depois você já está curado. E a farmácia viva, as folhas de chá, ela leva de dois a três dias pra fazer efeito. Então ela vai te abrandando aos poucos, ela vai curando aos poucos porque vai te curar de vez pra que aquilo não volte. ela não vai enganar o seu cérebro. Ela vai trabalhar naquilo que você precisa, naquilo que está doendo, mas também trabalhando para que aquilo não volte. A diferença é só essa. 

RN- E como deve ser feita a introdução ao uso da farmácia viva? Quem as pessoas devem procurar para se informarem melhor?

Nesse caso, os livros fazem efeito. Porque se não tem conhecimento, procure ler muito, se introduzir no meio de pessoas de “idade” que usam muito os chás, que usam muito a farmácia viva, medicina natural… Que eles tenham mais entendimento, que venham se achegando mais e limpando a mente porque a medicina branca fez uma lavagem cerebral na maioria das pessoas, porque na maioria das vezes a pessoa chega no médico e o médico pergunta: 

“o que você tomou?”

Aí ele fala “eu tomei um chá”

“chá de quê?”

Vamos supor que ele esteja com dor de barriga…

“Eu tomei um chá de Macaé”. 

Aí o médico fala: 

“Mas chá de Macaé não cura! Não pode tomar chá de Macaé! Você tem que tomar isso daqui” 

Por que não pode tomar um chá de Macaé?

Então o que acontece? É uma política que deve ser muito bem trabalhada para que eu não atrapalhe eles e nem eles me atrapalhem. Porque o lado deles é vender! Eles querem vender. O negócio deles é dinheiro. Porque a cada remédio que o médico passa para o paciente, ele ganha uma porcentagem ali em cima. E você ir ali na mata pegar uma folha, uma erva pra fazer um chá, a natureza não está te cobrando nada, é você que tem que agradecer à natureza e preservar pra você ter de novo. 

Então eu acho muito importante as pessoas lerem, entenderem, assistirem as lives quando falam de ervas e chás para elas aprenderem a trabalharem a sua mente e o seu corpo dentro da medicina natural. 

RN – Como a senhora acha que poderia ser feita a aliança entre a medicina alternativa e a “medicina branca” para que fossem extinguidos esses mitos a popularizar a farmácia viva? 

Se ela entrar no SUS, popularizou! Se ela entrar no SUS, acabou! Aí ela vai embora, vai em frente. Sem atrapalhar eles e eles sem atrapalhar nós. Só que você tem a sua própria opinião. Se o médico passar “isso, isso e isso”, ele vai passar e você vai tomar o chá. Se você falar com ele que vai tomar o chá, no caso você vai ser passado pra um outro médico que prescreve a medicina viva, trabalha com a medicina viva, pra poder te prescrever alguma folha de erva para você tomar. 

AA – Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre a importância desse movimento e do seu trabalho para o reconhecimento dessa medicina

Esse trabalho é importante pra mim porque vai expandir, vai crescer, ela vai vir à tona de novo para continuar o que já está sendo feito. Então a farmácia viva é muito importante. E outra coisa… Eu já estou caminhando pra lá! Então eu acho que esses encontros, essas palestras, vão ficar na memória para ajudar as outras pessoas que estão vindo, os acadêmicos que estão vindo, as experiências que estão vindo… 

Eu não sei se daqui há 50 anos ou daqui a 100 anos ainda vão ter as ervas que eu conheço nos dias de hoje, ou se vai ter alguém que tenha o conhecimento que eu tenho sobre essas ervas. Então eu acho importante, não só falar dessas ervas, mas também filmar, fotografar, guardar as folhas para que no amanhã, no depois, isso fique guardado para novos conhecimentos, novos alunos, nova população que está vindo aí.

E a minha importância na farmácia viva… Eu estou me sentindo importante dentro da farmácia viva, porque o meu conhecimento é vivo, não é um conhecimento acadêmico. Não desfazendo dos acadêmicos porque nós precisamos deles, e eles têm que gravar isso tudo que nós estamos falando agora, para que amanhã, dentro do meu conhecimento eles possam passar pra frente de acordo com o conhecimento deles. 

Então quando me chamam pra fazer uma palestra, conversar, eu acho muito bom eu falar! Eu gosto de falar! Eu gosto de falar, eu gosto de sair, eu gosto de mostrar, e também explicar: “essa folha serve pra isso, isso e isso…”. Assim aquela pessoa que está ali do meu lado, mesmo que não tenha conhecimento, alguma coisa vai ficar gravada na cabeça dela. Isso é trocar sabedoria. 

AA – Como a senhora acha que poderia ser feito o trabalho de capacitação com os médicos para que eles adquirissem um pouco desse conhecimento, uma vez que a senhora não possa atuar diretamente nesses espaços? 

Eu acho que nesse caso seriam cursos. Eu falaria do meu jeito, para que serve, quando que serve, e outro médico formado dentro da medicina natural, (porque já tem médicos formados dentro da medicina natural), explicando para outros médicos a eficácia da minha fala sobre as ervas. Porque aí seria uma coisa que eles estão vendo que foi comprovada. Não é que eu tenha teoria, porque eu não tenho teoria, eu tenho prática e prática não é teoria. E eles também que se formaram têm a prática, mas têm a teoria também. 

Eles precisam ter a comprovação. Os médicos que não entendem precisam ter a comprovação daquilo que eu falei. Eu falo, você comprova e eles têm a comprovação daquilo que eu falei. Porque se não for esse conjunto da minha fala com a dos médicos formados, a minha fala com a fala acadêmica, porque a minha linguagem é diferente da deles, a minha linguagem é ancestral. 

Então se for fazer um curso, eu vou, mas você também vai! Porque você tem sua fala acadêmica e eu tenho a minha fala ancestral, do jeito que eu aprendi. E isso é muito importante. 

AA- Tem algo a mais que a senhora gostaria de acrescentar? 

Colocar um pouco mais a espiritualidade. Que o povo respeite mais a gente, tenha mais compreensão, mais entendimento… Antes que eles nos julguem, procurar saber mais da espiritualidade, o que é a espiritualidade, como se trabalha a espiritualidade… E eles têm que entender que a espiritualidade em si, pelo menos que eu conheça, é a única que preserva a natureza. Nós precisamos do verde pra gente sobreviver, pra gente poder curar… Porque a gente cura através das ervas, através das plantas. 

Preservar o pai terra, preservar a mãe terra, nem que você tenha cuidado só com o pedacinho onde você mora, só com o seu quintal, ter o maior cuidado e zelo por ele… Plantar; cuidar dele; chegar de manhã e tirar os pés do chinelo; botar a mão no chão; conversar com ele pra ele expelir toda a energia negativa sua e emanar energia boa pra você romper o dia…

Nós precisamos cuidar da nossa saúde, porque hoje a terra nos alimenta, nos servimos dela. E amanhã a gente serve a ela.


Entrevista: Renata Nunes e Andriza Andrade

Texto: Renata Nunes

Imagens: reprodução/Instagram

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